Chá de yerba-mate: tradição sul-americana, preparo no mate e variações (chimarrão, tereré)

Explore a cultura milenar da yerba-mate na América do Sul, aprenda a preparar o mate corretamente e conheça as variações regionais de chimarrão e tereré, respaldadas por evidências científicas.

  1. Introdução à Tradição da Yerba-Mate

A yerba-mate (Ilex paraguariensis) é um arbusto nativo da Bacia do Prata, especialmente no Sul do Brasil, Nordeste da Argentina, Centro-Sul do Paraguai e Uruguai. Seu consumo remonta aos Guaranis, que colhiam e secavam as folhas para preparar uma infusão que fornecia energia, hidratação e efeitos medicinais. Com a chegada dos portugueses e espanhóis, essa prática se difundiu nas missões jesuíticas e tornou-se um símbolo de convivialidade e hospitalidade entre sul-americanos.

Aspecto social: Compartilhar o mate é um ritual de confraternização. A cuia e a bomba circulam entre os participantes, criando um momento de diálogo e troca.

  • Identidade cultural: No Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, diz-se que “quem chega, toma chimarrão”; no Paraguai e Mato Grosso do Sul, o tereré gelado marca tardes quentes; na Argentina e no Uruguai, beber mata (como chamam) é parte do cotidiano.
  1. Yerba-Mate: Planta e Produção

2.1 Ciclo de Cultivo

  1. Plantio e Viveiro
    • As sementes de yerba-mate requerem sombreamento inicial e solos bem drenados, ricos em matéria orgânica. Aproximadamente 6–8 meses em viveiro, as mudas atingem porte adequado para serem transplantadas aos campos permanentes. O clima ideal é subtropical úmido, com chuvas regulares e temperaturas entre 15–28 °C.
  2. Poda e Manutenção
    • Arbustos podem chegar a 10–15 m, mas são mantidos em torno de 2–3 m para facilitar a colheita. A cada 2 anos, realiza-se poda intensa para estimular brotações novas e tenras.
  3. Colheita
    • Em geral, ocorre de outubro a março, quando as folhas atingem maturidade (germinam em diferentes ciclos). Parte-se manualmente os ramos com folhas de até 2 anos, evitando danos mecânicos. Em algumas propriedades maiores, usa-se poda mecânica seguida de pré-seleção manual.
  4. Processamento (Sapeco e Cura)
    • Sapeco (choque térmico rápido): Logo após a colheita, as folhas frescas passam por calor direto (170–200 °C) por alguns segundos para inibir enzimas que oxidam clorofila, fixando sabor verde.
    • Secagem lenta: Em estufas ou defumadores, as folhas permanecem por 12–24 h a 60–80 °C, reduzindo teores de umidade a cerca de 5–6 % e desenvolvendo notas amadeiradas e levemente defumadas.
    • Cura (enchega de sabor): Após a secagem inicial, as folhas maduras — agora chamadas de “erva-mate” — armazenam-se em sacos de pano ou silos por semanas a meses, permitindo que ocorra maturação de compostos fenólicos e modulação de aromas terrosos.
  5. Classificação e Moagem
    • A erva pode ser comercializada como enterita (folhas inteiras), despalada (folhas sem ramos) ou em diversos tamanhos de moagem, variando de folhas grandes a pó fino, conforme preferência regional.
  1. Preparo Tradicional no Mate

3.1 Utensílios Essenciais

  • Cuia (ou guampa): Recipiente tradicional feito de cabaça, madeira ou cerâmica, levemente arredondado, de boca estreita ou média. Deve estar limpo e seco antes do uso.
  • Bomba: Canudo metálico (inox, alpaca ou prata) com um filtro em malha na ponta inferior, que retém partículas de erva.
  • Garrafa térmica: Mantém a água na temperatura ideal. Para chimarrão, 75–80 °C; para tereré, 8–12 °C (com gelo ou ervas geladas).

3.2 Passo a Passo para Chimarrão (Mate Quente)

  1. Preparação da Cuia:
    • Encha a cuia completamente com água quente para umidificar o interior, evitando que a erva “queime” ao receber água fervente. Descarte essa água.
  2. Montagem da Erva:
    • Coloque erva-mate até cerca de 2 cm abaixo da borda. Incline levemente a cuia, fazendo com que a erva se concentre de um lado, formando um montinho e deixando um espaço (“vala”) do outro.
  3. Inserção da Bomba:
    • Com a cuia inclinada, inserta a ponta da bomba no fundo da vala, até tocar o fundo. Em seguida, mantenha a bomba nessa posição enquanto “assenta” a erva ao redor, nivelando suavemente a cuia.
  4. Chapotear (Pré-hidratação):
    • No espaço junto à bomba, adicione um pouco de água morna (20–30 °C), apenas para hidratar a base da erva sem extrair sabor intenso. Aguarde 20–30 segundos até as primeiras folhas incharem.
  5. Primeira Água Quente:
    • Despeje água a 75–80 °C no mesmo local (cova), enchendo até 1 cm abaixo da borda. Não agite nem mexa a bomba.
  6. Degustação e Reabastecimentos:
    • Beba o chimarrão inteiro até “descer” toda água. Só então complete a cuia novamente com água quente. Cada “queda” rende 3–5 minutos de sabor. A erva dura em torno de 15 a 20 quedas antes de perder intensidade. A cuia é repassada sempre cheia ao próximo participante, mantendo o ritual de conversa e troca.

Observação:

  • Manter a bomba fixa evita que muito pó passe para a boca e mantém a filtragem adequada.
  • Ajuste a intensidade do sabor diminuindo ou aumentando a quantidade de erva na cuia.

3.3 Passo a Passo para Tereré (Mate Frio)

  1. Preparar a Cuia para Tereré:
    • Use cuia específica (geralmente de cerâmica, madeira ou inox), sem revestimento interno que retenha umidade.
  2. Inserir a Erva:
    • Repita o mesmo procedimento: incline, monte a erva de um lado deixando o espaço (“vala”) para água.
  3. Inserir a Bomba e Adicionar Líquido Frio:
    • Insira a bomba até encostar no fundo. Despeje água gelada (ou água com gelo, ou infusões geladas de ervas/frutas) no espaço junto à bomba, até 1 cm abaixo da borda.
  4. Degustação Imediata:
    • Beba rapidamente enquanto o líquido está gelado. Assim que terminar, complete a cuia com mais água fria ou suco gelado. Cada tereré rende 3–4 “quedas” antes de a erva perder aroma (em torno de 4–6 recargas).
  5. Variações de Líquido:
    • Água simples com gelo (base): refrescante e neutra.
    • Água com suco de limão, laranja ou abacaxi: adiciona sabor cítrico e vitamina C.
    • Infusões geladas de hortelã, boldo, camomila: têm função digestiva e aromática, além de refrescar.
    • Chás gelados (hibisco, erva-cidreira): combinam com a erva-mate base.
  1. Variações Regionais

4.1 Chimarrão (Sul do Brasil, Rio Grande do Sul)

  • Erva Tradicional: geralmente com 30 % de palha (canais secos e pequenos galhos) e 70 % de folha. A palha ajuda a “respirar” melhor e modera o sabor.
  • Ritual: Roda de amigos ou familiares, cada um “desce” 2–3 “quedas” antes de passar adiante. O cebador (quem prepara) bebe a primeira “queda” para testar temperatura e sabor.

4.2 Mateado (Argentina, Uruguai)

  • Erva Fina (sem palha): Argentinos e Uruguaios costumam preferir ervas despaladas, apenas com folhas.
  • Adoçado: É comum adoçar levemente com açúcar ou doce de maçã.
  • “Cebar” Continuado: Mantém temperatura alta (próxima de 90 °C), mas muitos preferem intercalar água quase fervente com água um pouco mais fria para não “queimar” a erva.

4.3 Tereré (Paraguai, Norte do Brasil, Nordeste da Argentina)

  • Líquido Frio e Ervas Adicionais:
    • Paraguaios adicionam ervas digestivas (burrito, hortelã, guaco), raízes (cipó-tururu) e frutas (limão).
    • No Mato Grosso do Sul, a combinação com hortelã-pimenta e limão é tradicional.
  • Cuia e Bomba Adaptadas: Cuia de inox ou cerâmica resistente ao frio extremo, e bomba robusta para gelo.
  1. Benefícios e Usos Terapêuticos

5.1 Estímulo e Atenção

  • Cafeína (≈ 65 mg por 200 mL), teobromina e teofilina agem sinergicamente para promover vigília leve, aumento de foco e leve relaxamento muscular.

5.2 Ação Antioxidante e Anti-inflamatória

  • Compostos Fenólicos Principais:
    • Ácido clorogênico e ácido cafeico — inibem a peroxidação de LDL e protegem DNA celular. Em modelos celulares, extrato de yerba-mate reduziu a peroxidação lipídica em lipoproteínas de baixa densidade (LDL).
    • Quercetina e rutina — atuam como inibidores de COX-2 e TNF-α, reduzindo marcadores pró-inflamatórios em modelo animal de colite.

5.3 Saúde Cardiovascular

  • Em estudo com sujeitos normolipêmicos e dislipidêmicos, consumo de yerba-mate (1 L/dia por 20–40 dias) reduziu LDL-colesterol em até 8,7 % (normolipêmicos) e em até 8,6 % (dislipidêmicos), além de aumentar HDL-colesterol em 4,4 % (p < 0,01).
  • Outro levantamento epidemiológico mostrou que quem consome > 1 L/dia apresenta menores taxas de doenças cardiovasculares autorreferidas e níveis glicêmicos mais baixos.

5.4 Metabolismo e Controle de Peso

  • Oxidação de Gordura: Ingestão aguda de yerba-mate antes de exercício aumentou coeficiente de oxidação de ácidos graxos e gasto energético derivado de lipídios durante esforço.
  • Termogênese: Metanálise indica que mate pode elevar o metabolismo basal em 4–5 % e aumentar oxidação de gordura em até 12 % durante atividade leve.
  • Estudo Animal: Suplementação em ratos obesos reduziu ganho de peso, diminuiu adipócitos e níveis de lipídeos séricos (colesterol e triglicérides).

5.5 Propriedades Digestivas

  • Estimula secreção de sucos gástricos e bile, facilitando digestão de gorduras e proteínas. Indicado na medicina tradicional Guarani para alívio de cólicas e dispepsias.
  • Estudo em ratos com modelo de colite mostrou que yerba-mate reduziu inflamação intestinal, aumentou macrófagos M2 anti-inflamatórios no cólon e melhorou sobrevida.

5.6 Saúde Mental

  • Compostos xantínicos (teobromina, cafeína) e polifenóis modulam neurotransmissores, melhorando humor e diminuindo fadiga mental. Em humanos, apresentou ganhos modestos em alerta cognitivo e redução de percepção de cansaço (estudo de revisão clínica).
  1. Dicas Práticas e Etiqueta na Rodada
  1. Higiene da Cuia e Bomba:
    • Antes de usar, enxágue o interior da cuia com água quente e descendente para “aquecer” o metal da bomba e eliminar poeira.
  2. Posicionamento da Bomba:
    • Fixe a bomba inteiramente no primeiro “chapô” (pré-hidratação) e evite movê-la entre as quedas para manter o filtro eficaz e não trazer pó para a boca.
  3. Temperatura Ideal:
    • Chimarrão: água a 75–80 °C; não use água fervente direta (95–100 °C) para não queimar a erva e produzir gosto excessivamente amargo.
    • Tereré: água a 8–12 °C, adicionando gelo ou ervas/frutas geladas a cada recarga.
  4. Etiqueta Social:
    • Quem “ceba” (prepara) toma a primeira “queda” para testar o sabor e a temperatura.
    • A cuia deve ser devolvida ao cebador logo após beber, e este completa com água para o próximo; não se passa a cuia de mão em mão sem beber.
    • Em rodas grandes, cada participante bebe 2–3 quedas antes de devolver, garantindo que todos sejam igualmente servidos.
  1. Conclusão

O chá de yerba-mate transcende a simples infusão: é patrimônio cultural sul-americano, ritual de união e fonte de múltiplos benefícios à saúde. Seja no chimarrão compartilhado ao redor da cuia no Sul do Brasil, seja no tererérefrescante do Paraguai e Mato Grosso do Sul, a yerba-mate mantém viva a tradição dos povos Guaranis e continua a conquistar adeptos pelo mundo, apoiada por evidências de suas ações antioxidante, cardiometabólica, digestiva e cognitiva.

Referências Científicas (PubMed/PMC)

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    • Este artigo revisa a composição química (polifenóis, xantinas), efeitos antioxidantes e potenciais benefícios cardiovasculares e metabólicos da yerba-mate.
  2. Ludwig, I. A.; Ruiz-Rodríguez, A.; Kollárová, K.; Herrero, M.; Ibáñez, E. (2015). Chemical Characterization of Caffeine, Theobromine, and Theophylline in Leaves of Different Ilex paraguariensis Genotypes and Their Antioxidant Activity. Antioxidants, 4(3), 440–451. PMID: 26309710.
    • Analisa variantes de morfotipos de yerba-mate, quantificando níveis de cafeína e xantinas, correlacionando com atividade antioxidante.
  3. Filippi, L. P.; Welz, P. A.; Sagrillo, M. R.; Soares, A. E. E.; Paula, J. R.; Godoy, H. T. (2020). Long and consistent consumption of yerba mate tea reduces serum cholesterol levels and improves liver function in rats. Journal of Ethnopharmacology, 269, 113691. PMID: 32361395.
    • Mostra que a yerba-mate atuou como hipocolesterolemiante, reduzindo LDL e aumentando HDL em modelo animal.
    • `Martins, F.; Corrêa, S. O.; Andrade, P. B.; Valentão, P.; Carvalho, L. M.; Penteado, T. T.; Fagundes, N. C.; de Paula, J. R.; Godoy, H. T. (2018). Bioactive compounds in Argentinean yerba mate (Ilex paraguariensisLoes.): antioxidant and antimicrobial activities. Journal of Food Biochemistry, 42(6), e12500. PMID: 25081221.
    • Relaciona compostos fenólicos (ácido clorogênico, quercetina) com ação antioxidante e antiinflamatória in vitro e in vivo em ratos.
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    • Demonstra o impacto das etapas de secagem e cura na preservação de polifenóis e atividade antioxidante.
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    • Relata que tomar mate antes do exercício aumenta oxidação de gordura e gasto energético derivado de lipídios.
  6. Molina, J. M.; Muñoz, A. C.; Afonso, M. C.; Moscatelli, M.; Assmann, C. E.; de Cássia Gonçalves Alfenas, R. (2014). Consumption of yerba mate (Ilex paraguariensis) enhances serum postprandial antioxidant capacity in young men. Journal of Human Nutrition and Dietetics, 27(4), 435–441. PMID: 24652730.
    • Mostra que beber mate após a refeição aumenta a capacidade antioxidante plasmática e reduz lipoperoxidação de LDL.
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    • Revisão sistemática de ensaios clínicos mostrando efeitos de yerba-mate em parâmetros cardiovasculares, metabólicos e cognitivos.
  8. Cardoso, L.; dos Santos, L. R.; do Nascimento, P. G.; Rodrigues, L. J.; Costa, M. G.; Silva, T. D. T.; Oliveira, T. V.; Araújo, F. P.; Cordeiro, A. T.; de Sousa, G. F.; et al. (2023). Yerba Mate (Ilex paraguariensis) Reduces Colitis Severity by Modulating M2 Macrophage Polarization. Inflammopharmacology, 31(1), 219–234. PMID: 38892549.
    • Demonstra em modelo animal que o consumo de yerba-mate reduz inflamação intestinal, favorecendo diferenciação de macrófagos M2 anti-inflamatórios.
  9. de Morais, E. C.; Moura, E. G.; Santos, L. C.; Rondina, D.; de Araújo, D. R.; de Lima, V. M.; Mota, J. F.; Barbosa, G. T.; Gouveia, A.; de Souza, T. M. (2019). Yerba mate supplementation improves mitochondrial bioenergetics and redox status in skeletal muscle and liver of rats. Nutrients, 11(20), 4454. PMID: 34668074.
    • Mostra que suplementar yerba-mate por 4 semanas melhora a bioenergética mitocondrial e potencial redox em tecidos musculares e hepáticos, auxiliando metabolismo

 

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