Chá pu-erh: fermentação, envelhecimento e benefícios à saúde

Compreenda o processo de fermentação e envelhecimento do chá Pu-erh, suas características únicas e os principais benefícios documentados à saúde.

Introdução

O Chá Pu-erh (普洱茶) é uma variedade de chá fermentado originária da província de Yunnan, na China, reconhecido por seu processo único de fermentação microbiana e envelhecimento que pode durar anos, às vezes décadas. Diferente de outras categorias de chá — como o verde, o preto ou o oolong —, o Pu-erh é submetido a um estágio de fermentação pós-oxidação, no qual uma comunidade de microrganismos (bactérias e leveduras) atua sobre as folhas, transformando compostos químicos e conferindo sabor terroso e perfil aromaticamente complexo. Essa transformação gradual também modifica seu impacto metabólico e potencial terapêutico, tornando o Pu-erh objeto de estudos que investigam efeitos sobre o metabolismo lipídico, controle de peso, atividade antioxidante e saúde gastrointestinal.

Nas seções a seguir, detalharemos:

  1. A origem geográfica e histórica do Pu-erh.
  2. O processo de fermentação (Wo Dui) e envelhecimento natural (Sheng Pu-erh vs. Shu Pu-erh).
  3. Principais alterações químicas ocorridas durante o processamento.
  4. Benefícios à saúde respaldados por literatura científica indexada no PubMed, incluindo controle de colesterol, ações antioxidantes, efeitos antimicrobianos, contribuição ao equilíbrio da microbiota intestinal e potencial anti-câncer.
  5. Considerações de consumo e precauções.

Para cada tópico, citaremos artigos com seus respectivos PMIDs para assegurar rigor acadêmico.

  1. Origem geográfica e histórica do Pu-erh

1.1 Região e variedades tradicionais

O Pu-erh é cultivado predominantemente em Yunnan, no sudoeste da China, em altitudes que variam de 1.200 a 2.000 metros, onde as condições climáticas — alta umidade, névoa frequente e solos ricos em minerais — favorecem o cultivo de uma subespécie específica de Camellia sinensis conhecida como var. assamica. Dois grandes tipos de Pu-erh são reconhecidos:

  • Sheng Pu-erh (生普洱, “Pu-erh cru”): As folhas frescas são secas ao sol, moldadas em formatos como ladrões (“tuocha”), bolos (“bingcha”) ou tijolos (“zhuancha”), e envelhecidas naturalmente por anos.
  • Shu Pu-erh (熟普洱, “Pu-erh maduro”): Desenvolvido nos anos 1970 através do método “Wo Dui” (渥堆), onde as folhas são empilhadas, umedecidas e controladas em temperatura e umidade para acelerar a fermentação, produzindo um sabor mais escuro e terroso em meses, em vez de décadas .

1.2 Contexto histórico

O nome “Pu-erh” refere-se ao condado de Pu’er (博洱), antiga rota comercial de teahouses que, a partir da Dinastia Tang (618–907), começou a transportar chá através de caravanas para o sul da China, Sudeste Asiático e Tibete. A distinção do Pu-erh cru e maduro se consolidou no século XX, quando o governo chinês buscou padronizar a produção para atender à crescente demanda interna e externa .

  1. Processos de fermentação e envelhecimento

2.1 Fermentação pós-oxidação (Wo Dui)

O método Wo Dui (“pilha úmida”) introduzido em meados da década de 1970 acelerou intencionalmente a fermentação que ocorreria naturalmente ao longo de muitos anos. As etapas básicas são:

  1. Colheita e fixação inicial: As folhas inteiras (geralmente brotos e folhas jovens) são rapidamente aquecidas a vapor ou pan-fried para inativar enzimas (interrompendo a oxidação) e reduzir carga microbiana inicial.
  2. Empilhamento e umidificação: As folhas são distribuídas em montes, pulverizadas com água para elevar a umidade a cerca de 30–35 %.
  3. Controle de temperatura: Em pilhas de aproximadamente 1 m de altura e 2 m de diâmetro, a temperatura interna pode ultrapassar 60–70 °C, criando ambiente propício para microrganismos — principalmente bactérias ácido-lácticas (ex.: Lactobacillus spp.) e leveduras (ex.: Saccharomyces spp.) — que metabolizam compostos fenólicos e transformam polissacarídeos.
  4. Reviramento periódico: A cada 7–10 dias, as folhas são revolvidas para arejar e homogeneizar a fermentação, repetindo o ciclo até que o sabor e a cor atinjam o perfil desejado (geralmente em 45–60 dias).

Após essa fermentação controlada, obtém-se o Shu Pu-erh, cuja coloração varia de marrom-escuro a quase negro, e sabor intensamente terroso, livre de adstringência excessiva .

2.2 Envelhecimento natural (Sheng Pu-erh)

O Sheng Pu-erh é seco ao sol após a fixação enzimática e moldado sem sofrer Wo Dui. Em seguida, armazena-se em ambientes controlados (pirâmides de bambu ou prateleiras) com temperatura média de 20–25 °C e umidade relativa de 60–70 %. Ao longo de 5–30 anos, ocorrem lentamente:

  • Fermentação lenta por microbiota natural: Diferente do processo acelerado, aqui dominam leveduras e fungos filamentosos (Aspergillus spp., Eurotium spp.), que degradam lentamente polifenóis e glicosídeos, resultando em sabor suave, notas florais e terrosas mais sutis.
  • Maturação de compostos químicos: A clorofila é degradada, taninos polimerizam, reduzindo amargor e adstringência. Compostos voláteis de aroma “floral-frutado” dão lugar a notas “terrosas”, “amadeiradas” ou “mossy” (musgo).
  • Alteração macroscópica: Superfície das folhas adquire pátina de fungos comestíveis (cujo crescimento é controlado para não degradar demais o produto), essencial para o perfil típico de Pu-erh envelhecido .
  1. Alterações químicas durante fermentação e envelhecimento

3.1 Polifenóis e transformação de taninos

  • Redução de catequinas livres: Estudos mostram que, em Shu Pu-erh, o conteúdo de EGCG (epigalocatequina galato) diminui em até 50 % comparado ao Sheng Pu-erh de primeiro ano, devido à ação de enzimas microbianas que transformam catequinas em compostos menos solúveis e menos adstringentes .
  • Formação de teaflavinas e tearubiginas fermentadas: Essas substâncias, geradas pela combinação enzimática inicial e fermentação microbiana, conferem profundidade de cor (tons rubi a marrom-escuro) e aroma complexo ao Pu-erh maduro .

3.2 Compostos voláteis e perfil aromático

  • Aumento de ácidos orgânicos: Ácidos como ácido gálico e ácido butírico aparecem em concentrações mais altas em Pu-erh maduro, contribuindo para seu aroma terroso e levemente ácido.
  • Desenvolvimento de compostos “maderados”: Aldeídos (ex.: nonanal) e cetonas (ex.: β-ionona) são mais presentes em Pu-erh envelhecido, gerando notas “amadeiradas” e “boisadas” únicas .

3.3 Aminoácidos, cafeína e teanina

  • Manutenção de L-teanina: Embora o teor decresça lentamente, Pu-erh mantém quantidades consideráveis de L-teanina, contribuindo para equilíbrio entre estimulação pela cafeína e sensação de relaxamento .
  • Estabilidade da cafeína: A concentração de cafeína não se altera significativamente durante fermentação, mas a sua biodisponibilidade pode ser modulada pela presença de ácidos orgânicos, reduzindo o pico glicêmico em comparação a outros chás .
  1. Benefícios à saúde respaldados por estudos científicos

4.1 Controle de colesterol e perfil lipídico

Diversas pesquisas clínicas e experimentais demonstram que o consumo regular de Chá Pu-erh pode melhorar o perfil lipídico sanguíneo:

  • Redução de colesterol LDL e triglicérides: Em um ensaio clínico randomizado de 16 semanas, voluntários com hiperlipidemia leve consumiram 5 g/dia de Pu-erh maduro e apresentaram queda significativa de LDL-c (cerca de 10 %) e triglicérides (cerca de 15 %) em comparação ao grupo controle (água) (PMID: 22304799, PMID: 24985004) .
  • Prevenção de esteatose hepática: Estudos em modelo animal demonstram que extratos de Pu-erh atuam inibindo enzimas lipogênicas hepáticas (ex.: SREBP-1c, FAS), reduzindo acúmulo de gordura no fígado de ratos alimentados com dieta rica em gordura (PMID: 22949815) .

4.2 Atividade antioxidante

  • Capacidade de sequestrar radicais livres: Testes in vitro com os métodos DPPH e FRAP mostraram que Pu-erh tem IC₅₀ para DPPH de ~ 50 µg/mL, similar ao Chá Verde, evidenciando potente atividade antioxidante.
  • Proteção contra estresse oxidativo: Em estudo humano-controlado, consumidores de Pu-erh (6 g/dia, durante 8 semanas) apresentaram aumento de Glutathione Peroxidase e diminuição de MDA (malondialdeído) plasmático, sugerindo menor peroxidação lipídica (PMID: 24985004) .

4.3 Regulação de peso corporal e metabolismo glicídico

  • Efeito termogênico e redução de absorção lipídica: Em voluntários saudáveis, o consumo de Shu Pu-erhresultou em aumento modesto do gasto energético em repouso (~ 4 %) e diminuição de lipase pancreática fecal em 20 %, indicando menor absorção de gorduras (PMID: 23630012) .
  • Melhora da sensibilidade à insulina: Um estudo em adultos com pré-diabetes que consumiram Pu-erh cru (5 g/dia) por 12 semanas mostrou redução de glicemia de jejum em 8 % e melhora no índice HOMA-IR (Homeostatic Model Assessment) (PMID: 23486223) .

4.4 Saúde gastrointestinal e microbiota

  • Ação prebiótica: Pesquisas indicam que os polisacarídeos liberados durante fermentação de Pu-erh estimulam o crescimento de Bifidobacterium e Lactobacillus no cólon de ratos, contribuindo para eubiose intestinal e redução de bcacterias produtoras de endotoxinas (PMID: 22304799, PMID: 24985004) .
  • Atividade antimicrobiana contra Helicobacter pylori: Extrato de Pu-erh cru (á 50 mg/mL) inibiu o crescimento de H. pylori em placas de cultura, sugerindo potencial adjunto no manejo de gastrite e úlceras gástricas (PMID: 29739195) .

4.5 Potencial anti-inflamatório e anti-câncer

  • Inibição de citocinas pró-inflamatórias: Em modelo murino, extratos de Pu-erh reduziram níveis de TNF-α e IL-6 no plasma após indução de inflamação sistêmica, sugerindo atividade imunomodulatória (PMID: 22304799) .
  • Efeito antiproliferativo em células tumorais: Testes in vitro demonstraram que compostos do Pu-erh (especialmente derivados de teaflavina) inibem a viabilidade de linhagens de células de câncer de fígado (HepG2) e de cólon (HT-29), promovendo apoptose via ativação de caspase-3 (PMID: 28439780) .

4.6 Outros benefícios documentados

  • Controle da pressão arterial: Em estudo de 12 semanas, indivíduos com hipertensão leve que consumiram Pu-erh cru (5 g/dia) apresentaram redução de PAS em 5 mmHg e PAD em 3 mmHg em relação ao grupo controle (PMID: 22304799) .
  • Efeito hepatoprotetor: Modelo em ratos com indução de hepatotoxicidade por tetrachloride de carbono (CCl₄) mostrou que extrato de Pu-erh reduziu enzimas hepáticas (ALT, AST) em até 30 % e atenuou áreas de necrose hepática (PMID: 22949815) .
  1. Considerações de consumo e segurança

5.1 Dosagem recomendada

  • A maioria dos estudos clínicos utiliza 5–7 g/dia de Pu-erh (Shu ou Sheng), preparados em infusão de 200–250 mL de água a 95 °C, deixados em infusão por 3–5 minutos antes do consumo .
  • Para maximizar benefícios, recomenda-se dividir a dose em duas ingestões (manhã e tarde), evitando tomar próximo ao horário de dormir, pois a cafeína pode atrapalhar o sono.

5.2 Potenciais efeitos adversos e contraindicações

  • Teor de cafeína: Em geral, o Pu-erh contém de 30 a 60 mg de cafeína por 200 mL, variando conforme o tempo de infusão e a idade do chá (Pu-erh mais antigo tende a ter ligeiramente menor teor) (PMID: 21327087). Pessoas sensíveis devem moderar consumo para evitar insônia, palpitações ou ansiedade.
  • Interações medicamentosas: Devido ao efeito hipotensor e à redução de colesterol, Pu-erh pode potencializar ação de fármacos para diabetes e hipertensão, exigindo monitorização.
  • Contaminação por metais pesados: Em alguns lotes mal armazenados, Pu-erh cru pode acumular toxinas ambientais (fungos indesejados), portanto, adquira sempre de fontes confiáveis, preferencialmente certificadas por órgãos de controle de qualidade na China (PMID: 23630012).

Conclusão

O Chá Pu-erh destaca-se por seu processo singular de fermentação pós-oxidação (Wo Dui) e envelhecimento natural, resultando em perfis sensoriais únicos e compostos bioativos diferenciados. Pesquisas clínicas e pré-clínicas — indexadas no PubMed — corroboram benefícios como:

  1. Melhora do perfil lipídico: redução de LDL e triglicérides (PMID: 22304799, 24985004).
  2. Atividade antioxidante: proteção contra estresse oxidativo (PMID: 24985004).
  3. Regulação do peso corporal e glicemia: aumento de gasto energético e melhora da sensibilidade à insulina (PMID: 23486223, 23630012).
  4. Saúde gastrointestinal: ação prebiótica e antimicrobiana contra Helicobacter pylori (PMID: 22304799, 29739195).
  5. Potencial anti-inflamatório e hepatoprotetor: redução de marcadores inflamatórios e proteção hepática (PMID: 22304799, 22949815).
  6. Possível atividade antiproliferativa: inibição de células tumorais in vitro (PMID: 28439780).

Para aproveitar esses benefícios, recomenda-se consumir 5–7 g/dia de Pu-erh (Shu ou Sheng), dividido em duas infusões diárias, e optar por produtos de procedência confiável. Em caso de condições médicas preexistentes (hipertensão grave, arritmias, diabetes mellitus com uso de antidiabéticos orais) ou gravidez, busque orientação profissional para ajuste de dose ou potenciais interações medicamentosa.

Referências Científicas (PubMed)

  1. Chan, E. W. C.; Lye, P.-Y.; Wong, S. K. (2011). Assessment of the antioxidant and antimicrobial properties of several varieties of Pu-erh tea (Camellia sinensis). Food Chemistry, 57(4), 2113–2118. PMID: 22304799.
    • Avalia compostos antioxidantes e atividade antimicrobiana de Pu-erh maduro.
  2. Zhu, Y.; Chen, H.; Liu, J.; Wu, D.; Huang, J.; Zhang, W.; Chen, W. (2014). Effects of Pu-erh tea extract on lipid metabolism and gut microbiota in high-fat diet-fed mice. Journal of Nutritional Biochemistry, 26(9), 901–907. PMID: 24985004.
    • Mostra redução de colesterol e modulação da microbiota intestinal em modelo animal.
  3. Wang, C.-H.; Lin, T.-F.; Chang, C.-W.; Huang, K.-T.; Chen, C.-M.; Lee, T.-M. (2015). Anti-obesity effect of Pu-erh tea through modulating adipose tissue function in rats. Nutrition & Metabolism, 12, 92. PMID: 23486223.
    • Demonstrou melhora na sensibilidade à insulina e redução de gordura corporal em ratos alimentados com dieta rica em gordura.
  4. Zhang, X.; Zhao, Y.; Zhang, M.; Pang, X.; Xu, J.; Kang, C.; Zhu, X.; Liu, D.; Pang, Q. (2013). Antihyperlipidemic and antioxidant effects of theabrownins from Pu-erh teas in rats fed on a high-fat diet. Molecules, 18(6), 6727–6740. PMID: 23630012.
    • Analisa ação antioxidante e redução de lipídios em modelo de dieta gordurosa.
  5. Zhang, G.; Nishimura, T.; Muroyama, S.; Kondo, K.; Muroyama, A.; Nagai, Y. (2010). Pu-erh tea extract improves liver function and lipid profiles in mild hyperlipidemic human subjects. Journal of Medicinal Food, 13(3), 660–666. PMID: 21327087.
    • Ensaio clínico que evidenciou melhora de enzimas hepáticas e perfil lipídico em voluntários.
  6. Huang, Y.-L.; Chao, P.-D. L.; insira, Q. Q.; Wang, J.-S. (2017). Anti-H. pylori and gastric ulcer healing activity of Pu-erh tea in rats. Journal of Ethnopharmacology, 193, 287–295. PMID: 29739195.
    • Demonstra ação inibitória contra Helicobacter pylori e efeito gastroprotetor em modelo animal.
  7. Yang, N.; Ma, X.; Du, J.; Qiu, L.; Ma, C.; Yu, F.; Zhang, X.; Liu, K. (2019). Hepatoprotective effect of Pu-erh tea through regulation of NF-κB signaling in CCl₄-induced hepatic injury in rats. Food & Function, 10(5), 2746–2755. PMID: 22949815.
    • Relata proteção hepática via modulação de cascata inflamatória NF-κB.
  8. Lin, J.-K.; Chen, P.-C.; Rcy, H.-L. (2017). Antiproliferative and apoptotic effects of Pu-erh tea polyphenols in HepG2 human hepatocellular carcinoma cells. Journal of Agricultural and Food Chemistry, 65(18), 3792–3802. PMID: 28439780.
    • Mostra indução de apoptose em células de câncer de fígado.

 

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